Morre Chico Flores
O jornalismo capixaba perdeu hoje, nesse dia 14 de dezembro, Chico Flores, um dos mais importantes nomes que a imprensa local conheceu em sua história recente.
– O corpo de Flores está sendo velado no cemitério Jardim da Paz, Laranjeiras Serra. Nossos sentimentos aos amigos e familiares. Segue abaixo nossa singela homenagem e seu último texto e importante contribuição ao Sindijornalistas quando sua participação na Comissão da Verdade.
Vasta experiência profissional, companheirismo, perspicácia, fino humor e a perspectiva ética e política de mundo foram suas marcas na vasta e longa trajetória de trabalho nos extintos jornal Folha Capixaba e revista Espírito Santo além da TV Educativa e dos jornais A Gazeta e A Tribuna. O velho camarada se orgulhava de ter estudado na União Soviética antes do golpe militar de 1964, que amordaçou o país por mais de duas décadas, e levou suas experiências políticas, profissionais e seu espírito de luta para o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Espírito Santo do qual foi um dos fundadores.
Anos depois, nos idos ano 1983, a renhida greve dos trabalhadores contra o descumprimento do acordo coletivo pelo jornal A Tribunaencontrou em Chico Flores não apenas participação inconteste mas, também, disposição para uma greve de fome que marcou a história do sindicalismo no Espírito Santo. Haveria, sem qualquer duvida, muito mais a dizer sobre o Chico mas além do imenso obrigado pela contribuição ao jornalismo e ao sindicalismo locais, deixamos aqui um registro feito por ele mesmo em uma de suas últimas contribuições para a Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo e que integra o Relatório Nacional da Verdade dos Jornalistas organizado pela Federação Nacional dos Jornalistas.
O episódio envolveu o extinto jornal Folha Capixaba, localizado na tradicional Rua Duque de Caxias, centro de Vitória, e que a partir dos anos 1950 se tornou porta-voz e veículo ligado ao Partido Comunista Brasileiro. Em seu artigo-reportagem, Chico narra a reconstituição do empastelamento do jornal no dia 2 de abril de 1964, quando caixas tipográficas e máquinas de escrever, livros e móveis foram atiradas no meio da rua por vândalos ligados do regime militar que havia vencido (e prendido) a maioria dos integrantes do PCB: Hermógenes Lima Fonseca, Vespasiano Meirelles, Aldemar Neves, Mauricio de Oliveira, Darly Santos, Manoel Martins de São Leão, Rubens José Vervloet Gomes, Adam Emil Czartorisky Gonçalves, Cody Santana Có, Anselmo Gonçalves, Clementino Dalmácio, Manoel Santana, Zélia Stein, Xerxes Gusmão Neto, Ewerton Montenegro Guimarães, A lcides Ferreira, dentre tantos outros, em sua trajetória de lutas, resistências e enfrentamentos.
O vandalismo contra o jornal Folha Capixaba
Por Chico Flores
Quando perguntei ao Darly Santos se conhecia todos os detalhes do vandalismo contra a Folha Capixaba, ocorrido na manhã de 31 de março de 1964, ele me respondeu que não, mas me acrescentou que sabia apenas o que lhe tinha sido transmitido por Manoel Martins de São Leão, também membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no Espírito Santo.
– São Leão me disse que foi o primeiro a chegar ao local, a tempo de assistir aquele grupo de pessoas invadir a redação do jornal e lançar na rua livros, caixas cheias papéis e documentos, além de máquinas de datilografia – respondeu-me Darly, ajeitando-se na cadeira, como um erudito diante de uma seleta plateia se preparando para uma longa palestra.
– Mas antes, vamos abrir a primeira cerveja do dia – completou sorrindo.
Esse encontro com Darly Santos ocorreu na ensolarada manhã de um domingo de março de 1974, em sua casa, na Barra de Jucu, que não passava de uma bucólica vila de pescadores de acesso rodoviário precário, localizada na foz do Rio Jucu, a 16 quilômetros ao sul do centro do município de Vila Velha. Ainda se assemelhava a uma remota e improvável povoação, com demografia rarefeita e pontilhada por algumas dezenas de casas de estuque pintadas de branco, protegida por densa e severa mata de restinga.
Lembro-me também que, apesar da pequena distância partindo-se de Vila Velha, a ida até à Barra de Jucu tornava-se uma viagem longa e cansativa se estivesse chovendo. Todavia, em dias ensolarados, assemelhava-se a um agradável passeio turístico cheio de surpresas. Duas eram as opções de trajeto: pelo bairro da Toca, depois prosseguindo por mais 15 quilômetros de estrada de barro; ou pela Praia da Costa, percorrendo o longo trecho de areia e terra da Avenida Gil Vellozo, a partir do edifício Guruçá, o primeiro prédio de apartamentos da orla vilavelhense.
Sempre preferi a segunda opção, não só pela indescritivelmente contagiante e bela paisagem formada pelo Oceano Atlântico, à minha esquerda, e pela cerrada restinga que escondia jabuticabeiras, pitangueiras e diversos pés de jamelão e araçá, à minha direita. Inclusive, por aguçado senso de oportunidade, jamais fui à Barra de Jucu, sem antes colocar, na mala do meu velho Simca Chambord modelo 1962, algumas sacolas de supermercado para armazenar as frutas colhidas ao longo do percurso, que variavam de mês a mês.
De agosto a setembro, por exemplo, a farta colheita era de jabuticabas; e de dezembro até final de janeiro, eu colhia jamelão que em casa era transformado em geleia pela minha prendada companheira. Mas, em qualquer mês do ano eu tinha araçá e pitanga em abundância. Eu me supria de farta quantidade de frutas silvestres ao longo dos 12 meses e ainda sobrava para dar aos vizinhos e aos colegas de redação de A Gazeta, na velha sede da rua General Osório, no centro de Vitória.
Eu até considerava as minhas visitas semanais a Darly Santos, na Barra de Jucu, “frutíferas” em todos os sentidos e por isso jamais as negligenciava. Aliás, esses encontros já faziam parte de minha rotina domingueira que perdurou até a morte desse insigne poeta, radialista e jornalista, no dia 20 de maio de 1985.
E, naquela manhã ensolarada de um domingo de março de 1977, como fazíamos sempre, também estávamos sentados na varanda, de frente para a rua ainda sem nome e calçamento que se parecia mais com uma trilha margeada por restingas esparsas, mas que, mesmo sendo dia de descanso, estava movimentada de pescadores que se dirigiam à Praia da Concha, para fazer manutenção nos barcos e prepará-los para voltar ao mar, na madrugada de segunda-feira. Todos cumprimentavam Darly e alguns até se aproximavam para um aperto de mão.
Foi a sorridente Maria, a fiel companheira de Darly havia vários anos, quem trouxe a primeira garrafa de cerveja do dia e os dois copos e os colocou sobre a pequena mesa de vime que ornamentava a varanda, avisando-nos que estava fritando linguiça de porco para o tira-gosto.
Também disse que em seguida sairia para comprar A Gazeta e retornou ao interior da casa também branca e construída de estuque igual às outras.
Como eu estava sedento em consequência da ressaca da noitada de sábado, bebi o primeiro copo de cerveja com sofreguidão. O mesmo fez Darly, comentando que os primeiros goles são sempre os melhores, com o que concordei. Ele também disse que adoraria estar bebendo uma “Krusovice” tcheca, ao invés de uma “Antártica” brasileira, pois para ele, a Tchecoslováquia produzia a melhor e a mais saudável e honesta cerveja do mundo.
– Eu sei e nos meus anos em Moscou, fazendo o curso de Direito Internacional, na Universidade Patrício Lumumba, bebi muita “Pilsner Urquell”, que é um pouco mais leve do que a “Krusovice”, mas não menos saborosa – disse-lhe eu, complementado: “Mas, é melhor nos contentarmos com a velha e boa “Antártica”, pois cerveja de país comunista, no Brasil de hoje, só em sonho”.
– Toda ditadura é burra, Chico!
Rimos, enchemos mais um copo e fizemos um brinde ao socialismo.
– Chico, eu não quero morrer sem antes ver o Brasil deixar de ser uma pátria madrasta para a maioria e se transformar num país justo para todos os brasileiros.
Maria retornou com uma terrina nas mãos, cheia de pedaços de linguiça de porco fritos, colocou-a sobre a mesa, se despediu e saiu, avisando que voltaria logo, “pois também quero participar da festa. Só vou comprar A Gazeta”. Darly se levantou e a acompanhou até o portão, onde a beijou e retornou, sentando-se. Pegou o copo, levou-o à boca e bebeu mais alguns goles da cerveja.
– Bem, agora vamos à história dos últimos instantes de agonia e morte da Folha Capixaba –sugeri.
Vamos – respondeu Darly, ajeitando-se novamente na cadeira.
De antemão, eu sabia que seria um relato longo, cheio de minudências e carregado de dramaticidade, pois Darly era um intelectual compenetrado e voraz devorador de livros que jamais perdia uma oportunidade de contar, com o mesmo talento inato de cronista, uma simples história do cotidiano, sempre num português claro e castiço e sem entediar uma plateia ou um isolado interlocutor. Ele se dizia um respeitador da língua e cultivava o hábito, desagradável para alguns, de corrigir quem ousasse cometer erro de linguagem, mesmo numa descontraída conversa de botequim.
– Não foi logo em seguida ao ato de vandalismo contra a redação da Folha Capixaba que ouvi o relato de São Leão, mas sim, uns dois anos depois – disse-me Darly, começando o relato.
– Por que demorou tanto tempo – perguntei.
– Logo nos primeiros dias após o golpe militar que colocou os militares no poder, a dispersão foi geral. Um tipo de dispersão que eu entendi, no princípio, pois a situação não estava muito clara e tangível a ponto de se saber o que deveria ser feito. Todos os membros do partido conhecidos meus, da direção ao militante de base, pareciam estar evitando locais públicos, talvez para não virar alvo de provocações dos que comemoravam o novo regime.
– Então, nesse primeiro período pós-golpe, você não teve contato com nenhum membro do partido, sequer aqueles mais chegados, como os colegas de trabalho?
– Tive, sim, mas apenas para cumprimentos, em encontros ocasionais. – explicou-me Darly, continuando: – Pelo menos, para mim, a dispersão durou até o dia em que resolvemos reunir a pequena base do partido que funcionava na Rádio Espírito Santo e que era integrada por mim, o violonista e compositor Maurício de Oliveira, e os jornalistas Adam Emil Czartorisk, Cody Santana Có e Anselmo Gonçalves .
– Sabe Darly, eu até estou propenso a acreditar que a retomada das atividades partidárias, aqui no Estado, foi imposta à direção do partido pelas unidades de base, como vocês, na Rádio Espírito Santo, e em outras empresas, bairros…
Justiça seja feita Chico: a nossa base na Rádio dificilmente se reunia, mesmo antes do golpe.
Aliás, isso sempre constou da nossa autocrítica, mas acompanhávamos e nos integrávamos à vida partidária através do Maurício de Oliveira, que era membro do Comitê Estadual e nos transmitia os informes do partido, mediava a discussão, distribuía as tarefas e arrecadava nossas contribuições mensais. Sei até que muitos camaradas nos consideravam “burgueses”.
– Não só a sua, mas várias outras bases negligenciavam as reuniões. Sei de algumas que se reuniam, no máximo, uma vez a cada dois ou três meses, como a do bairro Santa Lúcia, que era a causa das dores de cabeça do Mestre Flores, meu pai. Ele até comentava: “Como posso exigir reuniões de uma base composta por um maquinista da Vale que passa dias e dias viajando; três pescadores que passam semanas no mar; um motorista de caminhão de cargas que sai de casa avisando à companheira que não sabe quando volta; e duas donas de casas que já são avós?”
– No nosso caso, Chico, negligenciávamos as reuniões por indisciplina, mesmo. Eu, por exemplo, sou indisciplinado por natureza. Não cultuo a pontualidade e nem compromissos com hora marcada. Mas, naquela época, eu ansiava por uma reunião da nossa base para discutir a nova realidade do país e obter orientações sobre como proceder, mas, segundo Maurício Oliveira, naquele momento, a direção queria evitar equívocos e precipitações.
Ele informou-nos também que a hora era a de concentrar toda energia na reorganização e fortalecimento partidários, antes de deflagrar a luta contra a ditadura que tentava, apressadamente, se ajustar à realidade, pois os militares golpistas ainda estavam perplexos com o êxito rápido do golpe.
– É verdade. Foi uma aventura que deu certo e surpreendeu tanto a cúpula militar brasileira quanto os dirigentes dos órgãos do governo americano envolvidos – disse-lhe eu, enchendo novamente os copos de cerveja. Darly sorveu mais um gole e sentenciou: “É bom molhar a palavra”.
– Foi nessa época – prosseguiu Darly – que recebi uma intimação para comparecer à sede d da Polícia Federal, que ainda estava em fase de implantação na Avenida Vitória, quase em frente ao Asilo dos Velhos.
– Foi você quem inaugurou a fase da repressão aos comunistas, no Espírito Santo?
– Não fui eu, pois quando lá cheguei, dois dias depois de intimado, encontrei sentado numa surrada cadeira de cor preta, numa espécie de antessala, Maurício de Oliveira.
– Então, se Maurício chegou primeiro, foi ele quem inaugurou a fase da repressão aos comunistas, no Espírito Santo.
– Também não foi Maurício – respondeu-me Darly – completando: “Por lá, já haviam passado vários outros companheiros. Mas, tenha calma e paciência que eu conto tudo”.
– Claro que terei calma e paciência, pois ainda tenho muitas horas para ficar com você e Maria.
Lembra-se que eu nunca encerrei essas visitas semanais a vocês dois antes da janta.
– Eu gosto de me lembrar dessa minha primeira visita à Polícia Federal, pois ela foi hilariante –
prosseguiu Darly.
– Eu não entendi.
– É que encontrei Maurício muito sério, parecia preocupado. Falava pouco e com o tom de voz baixo, e era monossilábico ao responder às minhas perguntas.
– Mas, Maurício nunca foi falastrão e, além disso, é gago – interrompi de novo.
– Eu sei, mas dessa vez ele parecia mergulhado em profunda introspecção.
– Devia, mesmo, ser engraçado ver um Maurício introspectivo.
– Mas, a parte engraçada aconteceu quando já estávamos, nós dois, dentro do gabinete do delegado, sendo submetidos ao interrogatório.
– Houve truculência? – perguntei.
– Não. Ele apenas mandou-nos sentar e perguntou logo de início: “Vocês são comunistas?”
– Gostaria de ter visto essa cena.
– Foi Mauricio quem responde primeiro: “O senhor quer dizer violonista. Sim, sou violonista”.
– O delegado reagiu?
– Não, apenas desviou o olhar para mim, como que esperando resposta, e eu respondi imitando Maurício: Em primeiro lugar sou jornalista, em segundo radialista e em terceiro poeta. Mas podemos discutir o que é ser comunista.
Eu fiquei imaginando uma cena em que Darly Santos, com o dedo riste, voz empostada e olhando fixamente para o delegado da Polícia Federal, repetia com eloquência os termos de uma crônica que ele escrevera, anos antes do golpe militar, na edição da Folha Capixaba comemorativa do aniversário do PCB: “Eu considero comunista aquela pessoa que vê o mundo como corroído por contradições e que se disponha a transformá-lo. É comunista todo aquele que vê o homem em primeiro lugar e faz dele o principal objetivo e a prioridade das políticas governamentais.. Também é comunista aquele que quer que o produto interno bruto de um país seja destinado a suprir as necessidades de todos e não apenas para aumentar a riqueza de alguns poucos”.
Imaginei-o ainda colocando a mão no ombro do delegado e, como um professor solícito falando pausadamente para um aluno menos atento às aulas, dissesse: “É comunista aqueles que acreditam que o mundo deve ser modificado para que todos tenham as mesmas condições de vida e possam exerce, em plenitude, as qualidades humanas”.
Nessa cena hipotética, vi ainda o delegado transformado em um ser quase insignificante, diante da irretorquível retórica de Darly, que completava: “Ninguém vira comunista de uma hora para a outra, porque comunista é resultado de um processo de conhecimento. A tomada de decisão de ser comunista se apresenta quando se percebe que a fome e a miséria não fazem parte da vida, mas sim, foram criadas em benefício de alguns poucos. Portanto, é comunista todo aquele que está disposto a fazer história e a criar um mundo em que todos sejam iguais e desfrutem de oportunidades iguais de estudo, de trabalho, de moradia e qualidade de vida”.
– Porra, Chico, você está me ouvindo? Parece que está longe…
– Desculpe-me Darly. Deixei-me levar pela imaginação. Prossiga, prossiga…
– Pois é. Em seguida, o delegado relacionou o nome de algumas pessoas, a maioria de membros do Comitê Estadual do partido, e perguntou-nos se os conhecíamos.
– Vocês negaram?
– Claro que não. Eu disse que conhecia todos e acrescentei que Vitória era uma cidade pequena, onde todos se conheciam. Além disso, senhor delegado, eu sou jornalista e radialista que, por dever e exigências da profissão, precisa se relacionar com todo mundo.
– E Maurício respondeu o quê?
– Maurício seguiu a mesma linha e respondeu que era músico, apresentava-se em clubes, solenidades e em shows aberto à população, além de ter nascido e se criado em Vitória, e que por isso conhecia todo mundo.
A minha conversa com Darly foi interrompida com a chegada de Maria, sobraçando um exemplar da edição de A Gazeta daquele domingo. Ela beijou o marido, colocou o jornal em cima da mesa e disse que também tinha passado pelo restaurante Barramar e encomendado mais dez garrafas de cerveja que seriam trazidas ainda na parte da manhã.
– Espero que não demorem e que estejam geladas, porque o nosso estoque caseiro já está bem baixo – advertiu Darly.
Maria passou a mão na cabeça de Darly, desgrenhando seus cabelos, e seguiu para o interior da casa, de onde retornou em seguida, trazendo uma cadeira, mais uma garrafa de cerveja e mais um copo que ela mesma encheu. Depois, sentou-se bem próxima do marido, sorveu alguns goles de cerveja e disse: – Continuem a conversa, mesmo que estejam apenas contando anedotas cabeludas.
Darly informou-a sobre o tema de nossa conversa e continuou narrando a sua primeira experiência de enfrentamento da repressão que se iniciava em todo o país contra os comunistas. Disse que o delegado fez em seguida uma preleção, relacionando os principais propósitos do novo regime, que eram o de livrar o país do perigo comunista que se tornara uma ameaça ao mundo livre e cristão, reorganizar o Governo e a Federação, criar condições para o desenvolvimento do país e trazer paz, segurança e prosperidade para todos os brasileiros.
– O delegado disse ainda um monte de tolices próprias de pessoas que sequer têm noção do que estão fazendo – comentou Darly, assegurando-me que, naquele momento, chegou à conclusão de que o partido não poderia prolongar mais as preliminares para iniciar a luta contra a ditadura militar, mas sim, começar a agir imediatamente, inclusive, com ações armadas, senão iremos pagar muito caro, brevemente.
– A realidade, Darly, está mostrando hoje, 13 anos depois, que você estava certo, ao criticar inércia do partido diante do golpe militar que ainda estava perplexo com o êxito e tentava se consolidar o mais rápido possível.
– Hoje, Chico, está mais do que provado que a direção do partido fez avaliação errada da realidade e não foi capaz de preparar os comunistas e as massas para enfrentar os golpistas, dando tempo à ditadura militar para preparar, com competência, a repressão aos comunistas e neutralizar um contra golpe.
Eu não interrompi a narrativa do companheiro e amigo e continuei ouvindo-o em silêncio, enquanto ele prosseguia com a sua avaliação dos erros Partido Comunista, nos primeiros meses da ditadura militar. No entanto, notei que ele não demonstrava revolta, mas em seu semblante e
no tom de voz, percebi sinais de tristeza, melancolia e frustração. Era como se ele estivesse contendo as lágrimas, sem conseguir evitar o pranto internamente.
Continuei silente e o ouvindo atentamente, pois o que dizia vinha se comprovando desde 1973, quando um terço dos membros do Comitê Central já tinha sido assassinado e centenas de militantes comunistas estavam presos e submetidos a torturas, nos porões de órgãos de repressão da ditadura militar, em várias regiões do Brasil. Alguns poucos que tinham recursos já haviam conseguido sair do Brasil e se asilaram em outros países; outros mergulharam na clandestinidade, tomaram destino incerto e se esconderam.
– Chico, a incompetência e consequente inércia da direção do partido permitiu que a ditadura militar nos aniquilasse completamente. A falência de nossa direção partidária praticamente nos entregou à reação golpista, pois até 1969, quando saiu o AI-5 que fechou o Congresso Nacional e recrudesceu a repressão, nós estávamos de braços cruzados, sem adotar nenhum tipo de ação, nem legal e nem ilegal. Nossa postura era a de meros espectadores.
– Eu acho até, Darly, que a direção do partido, nos dois primeiros anos da ditadura, ainda alimentava a esperança de que o general presidente da República, Castelo Branco, eleito pelo Congresso Nacional, em abril de 1964, para cumprir os cinco anos de mandato de Jânio Quadros, iniciado em janeiro de 1961, convocasse eleições livres, logo em seguida.
– Para nossos dirigentes, Chico, qualquer tipo de ação, naqueles primeiros instantes em que o golpe militar tentava se consolidar, seria considerado simples foquismo provocado por desespero pequeno burguês. E o resultado dessa inépcia nós estamos colhendo hoje, com o colapso do partido e a prisão, tortura e morte de muitos companheiros, Brasil afora.
– Aqui, no Espírito Santo, o estrago também é considerável – disse-lhe eu.
– Sim, é desastroso. Temos o jornalista Otacílio Nunes Gomes, o redator-chefe da Folha Capixaba, que foi preso no ano passado, sofreu tortura nas dependências da Polícia Federal, em Vitória, durante dois meses, depois foi transferido para o Rio de Janeiro e está encarcerado nas dependências do Cenimar da Marinha, em péssimo estado de saúde, segundo me informou sua companheira.
– Ainda podemos relacionar outros casos dramáticos…
– Sim, Chico, como o caso de Clementino Dalmácio, que foi preso várias vezes e está respondendo a Inquérito Policial Militar, o tal de IPI, com base na Lei de Segurança Nacional, por crime de subversão; Vespasiano Meirelles, que há dois anos foi preso pela terceira vez desde o golpe e também está respondendo a IPI por subversão; Hermógenes Lima Fonseca, diretor responsável da Folha, que está respondendo IPI por subversão e também sofre a humilhação de prestar contas de sua vida e seus afazeres aos órgãos de repressão, praticamente, todo dia; e Manoel Santana, colunista da Folha, igualmente preso duas vezes até agora, submetido a torturas e que está respondendo IPI e não se encontra bem de saúde.
– Não podemos nos esquecer da Zélia Stein, aquela jovem lourinha que publicava poemas modernos na seção “Página dos Jovens” da Folha Capixaba e militava também no DCE da Ufes, que foi presa, sofreu tortura e mudou-se do Espírito Santo para sempre – acrescentei.
– O mesmo, Chico, aconteceu com Xerxes Gusmão Neto, que editava a “Página dos Jovens” na Folha Capixaba e tinha militância ativa no DCE da Ufes, e com Ewerton Montenegro Guimarães que também escrevia na mesma seção dos jovens e militava no movimento estudantil universitário, só que esses dois, mesmo sob vigilância dos órgãos de repressão, preferiram manter-se no Espírito Santo. Ainda na relação de jovens estudantes capixabas vítimas da repressão, estão Jorge Wilson Pereira, que resolveu deixar Vitória e ir para Barra de São Francisco, onde se mantém na atividade revolucionária, militando nas Ligas Camponesas, e Renato Soares, que conseguiu fugir do Brasil e se asilou na Europa.
– Agora vamos voltar ao tema principal dessa nossa conversa, que é o vandalismo contra a redação da Folha Capixaba, na manhã de 31 de março de 1964. Mas, primeiro, você está me devendo a relação dos comunistas que foram intimados pela Polícia Federal antes de você e Maurício Oliveira.
– O primeiro – continuou Darly – foi Vespasiano Meirelles, que era considerado pela repressão um “comunista histórico” por ser membro do partido desde a sua fundação, em 1922, e era uma espécie de assíduo frequentador dos cárceres da repressão no Brasil, desde a Intentona Comunista, em 1935. O segundo foi o médico Aldemar Neves, seguido do professor Rubens Gomes, Alcides Ferreira, o seu pai Mestre Flores e Manoel Martins de São Leão. Claro que estávamos apenas nas preliminares do regime militar e o pior viria depois”.
– E por falar em São Leão, já podemos entrar na história do último dia da Folha Capixaba.
– Podemos, sim – concordou Darly – mas antes vou molhar a palavra e folhear a Gazeta para contar os erros a revisão na minha crônica de hoje.
Enquanto Darly lia o jornal, eu me deixei acalentar pela lembrança de comunistas, uns ainda vivos outros não, alguns antigos e outros não tanto, mas todos igualmente abnegados defensores de uma causa que para eles tornara-se motivação vida. Seus semblantes surgiam em minha mente como uma exposição de fotografias em moldura clássica de madeira montada num carrossel que girava por impulso próprio.
Vi Renê Ramos Pinto que, na década de 1950, transformado em um dos líderes da Revolta Camponesa de Cotaxé e que, 14 anos mais tarde, estava preso e torturado nos cárceres da ditadura militar. Todavia, sem perdeu as esperanças de ver e viver, um dia, num Brasil socialista. Igualmente vi José Cipriano, que chorando de revolta e frustração pelo golpe militar e, que inconformado com o pacifismo do partido, mudou-se para o nordeste do país para integrar a resistência armada na forma de guerrilhas.
Outro semblante que em minha mente surgiu com detalhes foi o de Arildo Valadão, um comunista ainda muito jovem, mas que demonstrava ser suficientemente adulto para abraçar uma causa revolucionária de proporções e consequências inimagináveis, e fazer dela motivação de vida. Vi-o morto e decapitado por agentes da repressão. Vi também o velho Júlio Moreira, alfaiate de primeira linha e membro do PCB desde 1935, sendo um dos primeiros candidatos comunista a deputado estadual, no curto período da legalidade, de 1945 a 1947.
Surpreendi-me até, quando me surgiu na mente a fotografia do Mestre Flores, ainda bem jovem, sorrindo e segurando contra o peito um velho e inútil fuzil BAR M1918 americano da Primeira Guerra Mundial, num treinamento de guerrilha promovido pelo partido, em meados da década de 1950, nas matas de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.
A fotografia seguinte que vi, no carrossel que continuava girando, foi a do bombeiro hidráulico e jogador de futebol pelo Rio Branco, Vespasiano Meirelles, erguendo uma faixa em que se lia: “Preso e torturado, em 1935, pelo Governo Getúlio Vargas. Preso e torturado, em 1937, pelo Governo Getúlio Vargas. Preso e torturado, em 1947, pelo Dutra. Preso e torturado, em 1965, pela ditadura militar. Preso e torturado, em 1969, pela ditadura militar. Preso e torturado, em 1971, pela ditadura militar. Preso e torturado, em 1973, pela ditadura militar. Mas, não deixei de ser comunista”.
Outra peça destacada na exposição fotográfica do carrossel que continuava girando mostrava-me Clementino Dalmácio, em cima de um palanque montado na Praça Oito, no dia 1º de maio de 1945, “Dia do Trabalho”, fazendo o discurso que o transformou no primeiro capixaba a assumir, publicamente, a condição de comunista. Também vi, em seguida, a fotografia do cavouqueiro Benjamim de Carvalho Campos sendo cumprimentado pela sua eleição a deputado estadual pela legenda do Partido Comunista Brasileiro, em 1946.
Havia várias outras peças fotográficas expostas no carrossel que eu não pude ver porque ele parou de girar, quando Darly Santos, encerrando a leitura de A Gazeta, perguntou-me quem tinha escrito o editorial do dia, se eu ou Chico Silveira.
– Nem eu nem o Chico Silveira. Quem escreveu foi o nosso querido editor-chefe Jackson Lima – respondi.
– O Jackson precisa entender que o uso do verbo no gerúndio compromete a elegância do texto.
– Amanhã, transmitirei sua advertência a ele – respondi, lembrando-o também que o tema da nossa conversa ainda estava incompleto, pois faltava o relato sobre o vandalismo contra Folha Capixaba, na manhã de 31 de março de 1964. Na verdade, eu não estava com pressa de encerrar o assunto, pois sabia que Darly guardava muita informação sobre a vida do partido e dos seus membros, no Espírito Santo, pois o partido também era para ele uma motivação de vida. Porém, sabia que, se o estimulasse a pormenorizar sua crítica ao uso do gerúndio, eu seria submetido a uma longa e entediante e inoportuna aula de Português.
– Chico, como eu disse antes, me encontrei com São Leão dois anos depois do golpe militar, pois soubera que ele tinha alguns exemplares da última edição da Folha. Lembra-se que era ele quem cuidava da expedição do jornal para assinantes e o fazia como se fosse tarefa do partido?
– Sei, sim, e amanhã, mesmo, vou procurá-lo para obter também um exemplar, que não podem ser encontrados em lugar nenhum de Vitória, a exceção da Biblioteca Municipal que guarda apenas três de anos diferentes e que estão em péssimas condições.
– Desista, Chico, pois os que São Leão tinha foram queimados pela companheira dele, tão logo ele recebeu a primeira intimação para comparecer à sede da Polícia Federal. Aliás, foi generalizada, aqui no Espírito Santo, a queima de documentos e qualquer outra coisa que causasse a mais tênue suspeita de participação em atividades consideradas subversivas pelos agentes da repressão.
– É uma pena, Darly, mas no futuro, a História deverá cobrar vai cobrar muito caro desses golpistas.
– Eu já sonho com essa possibilidade, Chico. Sonho com o Brasil retornando à normalidade democrática e com o povo brasileiro resgatando o direito de escolher seus governantes, através do voto livre e soberano.
– Vamos sonhar, mas por enquanto, principalmente aqui nesta varanda, vamos continuar a história da morte da Folha capixaba.
– Em me encontrei com São Leão na casa dele, na Ilha do Príncipe. Eram mais de quatro horas da tarde e eu estava com um pouco de pressa, pois teria de retornar ao centro de Vitória para pegar o último ônibus que me levaria para casa, na Barra de Jucu. Era um velho ônibus Chevrolet caixa seca, modelo 1952, da Viação Biancucci que fazia duas viagens por dia: a primeira às 6 horas da manhã, partindo da Barra, e a segunda às 6 horas da tarde, partindo de Vitória.
– O Governo já está discutindo a viabilidade da construção de uma rodovia ligando Vila Velha a Guarapari, passando pela Barra de Jucu, e que se chamará Rodovia do Sol.
– Chico, isso não vingará. É uma utopia de Cacau Monjardim que vive sonhando com uma explosão imobiliária entre Vila Velha e Guarapari. Aliás, ele não fala e não escreve sobre outro tema. Num dos seus últimos artigos, no segundo caderno de A Gazeta, por exemplo, ele previu a construção de hotéis de luxo, ao longo do litoral, dotados de marinas para atracação de iates de grande porte e que atrairiam turistas americanos, ingleses e franceses. Citou até a construção de um aeroporto internacional na Ponta da Fruta, que não passa de um abrigo de emergência para os pescadores aqui da Barra, em épocas de vento sul.
– Pelo menos, os artigos de Cacau sobre o que ele mesmo chama de “caminhos do sul” são bem mais saudáveis e digeríveis do que as baboseiras publicadas por vários outros jornalistas da terra fazendo apologia da ditadura militar – disse-lhe eu, completando com o pedido para que retornasse à história do vandalismo contra a Folha.
– Você está certo Chico – respondeu-me Darly, continuando: – São Leão me recebeu com esfuziante alegria e até disse que eu era o visitante mais ilustre já recebido em sua casa, então. Eu agradeci o elogio, disse que eu é que me sentia honrado, nos sentamos na varanda, informei sobre o motivo da minha visita e ele começou a falar.
– Darly, não era ainda 8 horas da manhã quando eu cheguei à frente do prédio da Folha Capixaba, na rua Duque de Caxias. Sai de casa por volta das 7 horas, depois de uma noite praticamente sem dormir, pois estava preocupado e, ao mesmo tempo, tomado por uma ansiedade que me deixava, cada vez mais, nervoso. Eu só pensava em me encontrar com algum companheiro da direção do partido para obter maiores informações sobre o que estava acontecendo e receber orientação sobre como eu deveria proceder.
– Por que você não foi até a casa do companheiro Agostinho, que mora na Vila Rubim, a 500 metrosdaqui – perguntei a São Leão.
– Darly, você não mora aqui e não sabe que, à noite, é difícil e até perigoso caminhar pelas ruas, pois nenhuma delas é iluminada e pode-se cair numa dessas ribanceiras que circundam toda Ilha do Príncipe. Por isso fiquei à espera do raiar do dia, tempo que para mim demorou um século, principalmente a partir do momento em que eu ouvi, na Rádio Tupi, a notícia da fuga do presidente João Goular para o Uruguai e da decretação de vacância de poder pelo presidente do Senado, senador Auro Moura Andrade.
Em seguida, Chico, São Leão me contou que ao chegar à Praça Oito, encontrou Marinete, aquela moça que cuida do caixa da Folha, caminhando apressada, em direção à Praça Costa Pereira, pela avenida Jerônimo Monteiro. Ele a interceptou e notou que ela estava chorando.
– Eu fiquei apavorado, Darly, quando vi Marinete chorado. Logo pensei no pai dela, o velho Souza, que é o secretário-geral do partido, aqui no Estado, e até me precipitei, ao perguntar se ele já tinha sido preso. Ela me disse que o pai dela estava em casa, em Cobilândia, com pressão cardíaca alta, mas que a redação do jornal tinha sido invadida por um bando de pessoas, que estavam revirando tudo, e que estava indo à casa de Otacílio, no Morro da Fonte Grande, avisá-lo.
– São Leão contou-me também, Chico, que deixou Marinete prosseguir e dirigiu-se à rua Duque de Caxias.
– Darly, quando cheguei na Duque de Caxias, eu vi coisas sendo jogadas na rua pelas janela da redação, e resolvi entrar no prédio. Subi os dois vãos de escadas entrei nas dependências do jornal e vi uns dez homens abrindo gavetas, arrastando móveis e rindo. Tinha um que parecia ser o líder, pois dava ordens aos demais e até falava que o passo seguinte seria “encontrar os comunistas e exterminá-los”.
– São Leão me contou ainda que ele desceu do prédio, juntou-se a um grupo de curiosos parados na rua e assistindo ao vandalismo sem lhe dar muita importância, e se aproximou do monte de papéis, livros e caixas de papelão, além de uma máquina de datilografia Remington espatifada no piso de paralelepípedos, e recolheu o que achava serem documentos importantes e alguns exemplares da última edição da Folha rodada no sábado anterior.
– Darly, São Leão identificou os vândalos?
– Ele me disse, Chico, que todos eram desconhecidos para ele, mas deu detalhes esclarecedores.
– Darly, eu não reconheci ninguém, mas vi que dois homens estavam de terno, não lembro se marrom ou preto. Tinha também um rapaz louro com voz de locutor de rádio e muito ativo, e uma outra pessoa, também de cabelos louros, que me pareceu ser padre, pois usava aquela espécie de coleira branca no pescoço que todo padre usa quando não está de batina. Os demais vestiam roupa comum e não vi neles nada diferente que pudesse destacar.
– Muito interessante, Darly, o que São Leão relatou-lhe. Permite até que a gente faça algumas ilações, como por exemplo, deduzir que os homens de terno poderiam ser agentes policiais.
– É bem provável, Chico. Já o homem, também louro, usando “clergyman”, pode ser mesmo um padre, mas é impossível identificá-lo, pois em Vitória, todos os padres são louros, descendentes de imigrantes italianos.
– Porém, Darly, o rapaz louro com voz de locutor você já deve ter identificado ou, no mínimo, suspeitado de alguém.
– Também não, Chico, porque, em 1964, os únicos louros que trabalhavam em rádio, em Vitória, éramos eu, Adam Emil Czastorisk e Norberto Júnior, que era simpatizante do partido. Acredito até que o tal jovem não passasse de um coroinha que acompanhava o padre.
– São Leão não observou mais nada que se destacasse daquele inusitado contexto – perguntei.
– Ele me disse, Chico, que havia, entre os curiosos aglomerados em frente ao prédio da Folha, uma dupla de policiais militares fardados que apenas observavam.
– Na certa, Darly, os PMs foram enviados para lá com missão de evitar tumultos e facilitar a ação dos vândalos.
– Não duvido nada, Chico, pois foi isso mesmo que São Leão também suspeitou.
– Eu notei – prosseguiu São Leão – que os dois meganhas só me observavam, enquanto eu remexia os entulhos resultantes do vandalismo e resgatava o que achava importante, e nada faziam para deter os sujeitos que estava dentro da redação da Folha.
– Eu também perguntei a São Leão se ele tinha notado, além dos policiais, alguma outra autoridade entre os curiosos disse-me Darly.
– Não, não vi – respondeu-me São Leão, continuando – mas pode ser que houvesse e eu não tivesse percebido, pois estava desnorteado e só pensava em salvar o que pudesse do que eu achava serem documentos importantes do partido. E foi o que eu fiz. Enrolei tudo que consegui apanhar com os exemplares da Folha, coloquei embaixo do braço e dei no pé.
Darly deu por encerrado o relato de seu encontro com São Leão e ficamos em silêncio quebrado apenas pelo farfalhar da folhagem das duas túmidas castanheiras do quintal da casa, que balançavam acicatadas pelas rajadas vento nordeste que começava a soprar forte, naquele domingo morno de março de 1977. Passava do meio dia e, na rua de piso arenoso e margeada por esparsas restingas, via-se apenas pequenos e breves redemoinhos de vento que movimentavam areia.
– Bem, gente, o papo está bom, mas eu estou com fome e vou preparar o almoço – disse-nos Maria, levantando-se.
– Eu tenho uma ideia melhor – retrucou Darly, completando: – Vamos comer peroá frito e tomar a saideira no Barramar.
– Eu e Maria aprovamos a sugestão.
Permaneci com aquele casal maravilhoso por cerca de mais três horas e depois me despedi e partir em direção à minha casa, localizada à rua Maria Amália, centro de Vila Velha, levando comigo, ao mesmo tempo, a tristeza de tê-los deixado e a alegria de saber que, na mala do meu velho Sinca Chambord, havia uma sacola de supermercado cheia de araçás.