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Conversa de jornalista numa quase-crônica

Por Ruth Reis*

Hoje, 4/4. Plim (meu zap): Jô Amado, no alto da tela do celular. Opa, que surpresa, há tempo que não vejo. “Aqui é o filho do Jô….” Óbvio que a notícia era péssima. Jô nos deixou na segunda feira, 1º de abril, e com ele partiu o amigo, o profissional exemplar, o militante combativo, um pedaço importante da história do jornalismo, parte da memória de tantas lutas e a síntese do que é uma pessoa de espírito elevadíssimo e desapegado das coisas materiais da vida.

Ele se foi logo no dia do desaniversário do abominável golpe militar e pouco antes do dia do jornalista. Essas duas datas demarcam coisas importantes na vida dele e de muitos de nós. Sofreu com a ditadura e lutou contra ela de muitos modos, inclusive esgrimando o jornalismo no destemido jornal Posição e em outras redações.

A morte de Jô deixa um vazio triste e me devolve àqueles tempos em que fazer jornalismo era um ato de fé para mudar o mundo. A pedido de Fátima Côgo, que me provocou para fazer um artiguinho sobre esse nosso fazer, tento juntar esses momentos numa quase-crônica, relembrando um pouco da descoberta que fiz ao iniciar cedo na profissão de jornalista e depois percorrer mais de quarenta anos em vários domínios dela.

Numa parte que considero importante dessa trajetória, tive o privilégio de dividir com Jô reflexões, análises, projetos comuns, além de jogar muita conversa fora no curso de uma longa amizade, com direito a intervalos das novas moradas que ele arrumava. Mas sempre que voltava, o papo continuava de onde tinha parado. 

Com apenas 20 anos, eu já começava a descobrir a magia de uma redação de jornal daqueles anos finais da década de 1970. Aprendi a fazer jornalismo ao mesmo tempo na redação e na universidade, pois já no início do terceiro mês de aulas, em 1978, junto com outras quatro colegas de turma, atendi a uma chamada do jornal A Tribuna por novos profissionais.

Foi então que nos vimos entre as primeiras mulheres a atuarem nessa profissão em Vitória, quando se podia contar nos dedos as coleguinhas que davam conta daquele ambiente machista e meio anárquico das redações de então, onde o barulho das Remingtons e Olivettis era atravessado por comandos de fechamento de página, palavrões, piadas, risos e ansiedade pela matéria que sairia somente no dia seguinte.

O jornalismo chegava para nós, que iniciávamos, banhado na experiência dos tempos da ditadura militar, da censura e da resistência dentro do campo profissional, bem como das experiências de imprensa alternativa desenvolvidas então, inclusive em Vitória, com o jornal Posição, criado por Jô Amado e outros jornalistas, e tendo-o como primeiro editor-chefe.

Os profissionais que nos ensinavam jornalismo eram pouco mais velhos do que nós, mas já tarimbados conhecedores de suas práticas, e viviam com intensidade aquele anoitecer dos anos de chumbo. Iniciava-se o último período da ditadura militar em meio às lutas pela redemocratização. Era também um jornalismo que buscava nos jovens e inexperientes estudantes de comunicação, alguma renovação.

Naquela retomada da vida democrática que se anunciava para breve havia uma potência de transformação que contagiava e envolvia. Aprender a fazer jornalismo e compreender o campo da comunicação naquele momento, em meio à precariedade tanto das redações quanto da universidade, era um desafio e ao mesmo tempo um privilégio, pois o jornalismo nos colocava na primeira fila dos acontecimentos. Víamos antes e de perto tudo o que seria levado ao público logo depois.

O renascimento do movimento sindical de verdade e contra o peleguismo, impulsionado pelas greves do ABC paulista, do movimento estudantil, dos movimentos populares e dos partidos, se servia da nossa vitalidade e senso de urgência de sair daquele período macabro. De nossa parte, cuidávamos da organização do Sindicato dos Jornalistas, a partir de 1979, com Rogério Medeiros na presidência da primeira diretoria. Fui diretora do Sindijornalistas/ES na segunda gestão, de 1982 a 1985, num cargo da diretoria executiva, num momento de grandes mobilizações em todo o Brasil e da organização do movimento sindical em torno de centrais sindicais e da experiência da greve como instrumento de luta.

Fazer jornalismo, fazer sindicalismo, fazer política era o que nos movia, e naquela fusão de gerações, nós, mais novos, íamos aprendendo com os outros mais experientes, como Jô Amado. Mais do que ser jornalista o que nós tínhamos que alcançar era ser tudo ao mesmo tempo, o que podemos resumir, em ser cidadão.

A partir de 1990, passei a atuar como professora de jornalismo na universidade que me ensinou uma parte do que aprendi. Lá estou até hoje, atravessando e tentando sobreviver a todas as transformações que vivemos neste início de século XXI. Lá também encontro muitos daqueles jovens que já fui um dia, com seus sonhos e utopias.

Hoje, navegamos em outros tempos, mas o desejo de vivermos numa sociedade melhor e mais fraterna não pode nos abandonar. Jô já está na minha galeria de imortais, num lugar que evoca a luta, a resistência e a esperança de um mundo sem desigualdades. Nós, que estamos por aqui, temos a missão de prosseguir, encontrando os caminhos que nos levem a esse lugar feliz.

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* Ruth Reis é jornalista graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1996) e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com estágio pós-doutoral no Instituto Universitário de Lisboa (2017). É professora titular e pesquisadora, na Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Grupo de Estudos em Comunicação Cultura e Discurso.