A busca do equilíbrio entre público e privado
Por Vítor Taveira – Quando o leitor estiver acompanhando estas linhas, não haverá mais sinal de transmissão aberta para a Rádio Caracas de Televisión (RCTV), uma das maiores emissoras de televisão da Venezuela. A decisão não foi ilegal, porém foi uma escolha política que deverá trazer conseqüências importantes para o país.
A história começa em 1992, quando o tenente-coronel Hugo Rafael Chávez Frías teve cerca de um minuto na televisão para pedir aos companheiros da tentativa de golpe militar fracassada que depusessem as armas. Num país em profunda crise política e social, a aparição de Chávez como um dos líderes do levante e as palavras ditas naquele momento o tornaram uma das figuras mais importantes do país.
Em 1998, ele seria eleito presidente com apoio da mídia nacional. Porém, as medidas de enfrentamento às elites por parte do governo foram esfarelando esse apoio até que aquelas se tornassem uma oposição ferrenha. Diante da fragilidade dos partidos tradicionais, caídos em total descrédito junto à população, as redes televisivas assumiram papel descarado de apoiadoras – e planejadoras – do golpe que tiraria Chávez do poder por 48 horas em 2002.
Com o sinal da TV estatal cortado, as redes privadas diziam que o presidente havia renunciado e omitiam que se tratava de um golpe de Estado. Diante do contragolpe que trouxe o presidente democraticamente eleito de volta ao poder, as emissoras cinicamente colocaram novelas ou desenhos animados no ar, não informando o que acontecia à população.
Mudança de posições
Chávez nada fez nesse momento e deu à mídia total liberdade, inclusive para achincalhar seu governo e sua própria figura. Porém, no final do ano passado, em discurso improvisado, o presidente afirmou que não renovaria a concessão do canal RCTV, o mais antigo e um dos mais assistidos do país, que expira na presente data (27 de maio de 2007). A parcialidade e o descompromisso total da emissora para com a informação e a democracia seria mais do que suficiente para corroborar a decisão de não prorrogar o sinal da RCTV. Mas causa estranheza o fato de o mesmo não acontecer com outra emissora. O dono da Venevisión, empresário Gustavo Cisneros (terceiro homem mais rico da América Latina, segundo a revista Forbes) foi um dos principais articuladores do golpe de 2002. Diz-se que ocorreram, inclusive, reuniões dos golpistas na sede da emissora.
A situação mudou depois do referendo de 2004 quando, diante da pressão da direita, Chávez colocou seu cargo à disposição do povo venezuelano. Num tremendo “cala-boca” à oposição, o presidente venceu com 60% dos votos uma eleição transparente, acompanhada por diversos observadores internacionais. Tomada pelo desespero, a enfraquecida oposição ainda optaria pelo boicote às eleições legislativas, como protesto pela suposta falta de democracia no país, o que daria origem a um congresso 100% governista.
A partir daí, ficou claro que o chavismo não era apenas um fenômenos passageiro. Desse modo, duas emissoras – Venevisión e Televén – mudaram suas posições de ataque ao governo. Enquanto outras duas – RCTV e Globovisión – continuaram a ofensiva anti-chavista. O ministro das Comunicações, Willian Lara, afirma que a Venevisión “já baixou do golpismo, por isso não vamos tomar medidas contrárias”. Segundo a Folha de S.Paulo, o fechamento da RCTV abriria um filão de verbas publicitárias do governo, cuja principal beneficiária seria a emissora de Cisneros.
Esferas pública e privada
No lugar da RCTV operará a Televisora Venezolana Social (TVes), emissora estatal de serviço público. Preocupa uma possível fragilidade democrática da mídia venezuelana. Não porque se calou uma voz de oposição ao governo, pois a função de uma rede de comunicação não é ser um agente político pró ou contra o governo.
Embora se saiba que, na prática, a isonomia, a neutralidade e a imparcialidade sejam inalcançáveis, a busca por aproximar-se delas e o compromisso em ouvir todos os lados e levar a informação responsável ao cidadão é fundamental. E não foi cumprida pela RCTV, como mostra o dossiê do Ministério do Poder Popular para a Comunicação e a Informação da Venezuela. Porém, abre-se caminho para que a Venevisión se torne uma Rede Globo governista à moda venezuelana. E nós, brasileiros, sabemos muito bem os males que isso traz ao processo democrático. Não posso afirmar que isso está ocorrendo ou vai ocorrer com certeza, talvez só estando lá para perceber.
Podemos ir um pouco além e trazer para cá algumas conclusões a partir da polêmica em nosso país vizinho. O Brasil tem a oportunidade de avançar com a criação da TV pública anunciada pelo governo recentemente. Porém, a Venezuela Bolivariana possui projeto muito mais consistente e corajoso de democratização da comunicação do que nosso país, com forte estímulo às emissoras comunitárias.
Por aqui, batemos recordes de fechamento de rádios independentes pelo terrível (des)governo de Hélio Costa no Ministério da Comunicação. Com o fechamento da RCTV e criação da Teves, a Venezuela mostra-se infinitamente mais perto de um equilíbrio entre as esferas pública, privada e estatal do que o Brasil. Continuamos míopes, sem enxergar claramente o que se esconde por trás emissoras privadas – que fazem o que bem entendem, defendem seus interesses e subestimam nossa inteligência nos canais de TV aberta.
O direito de sonhar
Primeiramente, que fique claro que as concessões de televisão são públicas e devem compromisso ao cidadão; não são álibi para que o empresariado defenda seus interesses, manipule a informação, abuse do sensacionalismo e faça qualquer coisa pelo lucro e pelo bem dos seus negócios.
Outra lição é de que, apesar de as concessões serem dadas pelo Estado, é um perigo deixar totalmente em suas mãos a opção pela renovação ou não das licenças de transmissão. O poder executivo parece pouco indicado para decidir por si só acerca do tema, pois pode falar alto o oportunismo político. Deixar a questão para o legislativo também é perigoso em países como o Brasil, onde o Congresso está infestado de donos de grupos de comunicação.
Então, por que não poderíamos pensar em um sistema público para esse fim? Por que não fortalecer a democracia brasileira e estimular que, a cada vez que alguma emissora se encontre em processo de renovação de concessão, se possa reunir governo, sociedade civil e meio empresarial para discutir se tal emissora cumpriu ou não cumpriu o papel delegado pelo governo de servir à cidadania e ao entretenimento da população? Pode parecer utopia de um estudante de jornalismo, o que é plenamente aceitável. O que não podemos aceitar é um confortável sorriso hipócrita e dizer que está tudo bem na TV brasileira, já que seus quatro grandes canais têm a liberdade de competir entre si.
Para terminar, gostaria de parafrasear Eduardo Galeano, que dizia que por mais que caminhemos, jamais alcançaremos a utopia. Então para que ela serve? Serve para isso: para que não deixemos de caminhar. Um passo à frente, Brasil. E que o governo renove ao povo brasileiro a concessão do direito de sonhar!