Quando a guerra vai à imprensa
Por Fabiano Mazzini – É desafio dos mais complexos qualquer tentativa de projeção dos efeitos práticos da operação Satiagraha sobre as instituições do país. A tormenta provocada pela deflagração da ação dos federais se justifica por se tratar de uma das mais rumorosas operações de combate ao crime organizado de que se tem notícia nos últimos tempos, avaliação reforçada ao olharmos a identidade, o endereço e o círculo de relacionamentos dos envolvidos. Como é comum aos furacões, esse chegou provocando um rastro de destruição, ameaças e incertezas. Mais ainda: quando observamos o seu reflexo sobre o jornalismo, descobrimos, meio surpresos, que o tempo tecnológico que rege a moderna atividade de imprensa permanece atado à condição natural de determinada informação impactar ou não a sociedade, dispensando o uso de subterfúgios. Neste caso concreto, a imprensa brasileira foi surpreendida com uma guerra que lhe bateu à porta e ainda sofre o impacto da bomba cujos estilhaços caem sobre a sua cabeça.
Foi assim, meio que por acaso, que reaprendemos que o jornalismo praticado pelos diversos meios de comunicação ainda é capaz de esbarrar na linha tênue que distingue o momento de um acontecimento, suas possibilidades de edição e sua posterior divulgação. No lugar de um tratamento noticioso previamente editorializado – um mal que atende pelo vício disseminado de misturar informação com opinião –, assistimos ao retorno da busca frenética pelo relato do fato. Ao contrário dos freqüentes agendamentos e enquadramentos predefinidos, vimos a tentativa dos profissionais entenderem o que acontecia e, sobretudo, por que acontecia, ocasião em que a presença atuante dos blogs jornalísticos foi de grande utilidade.
Vazamento e sigilo da fonte
Naquela terça-feira, 8 de julho de 2008, durante longas horas, ou mesmo até no dia seguinte, o trabalho dos jornalistas ficou ao sabor de uma lógica de produção noticiosa totalmente externa aos veículos, fruto dos desdobramentos do fato inicial que se seguiram. Não havia planejamento, estrutura de produção e meios tecnológicos disponíveis que pudessem fazer a diferença se a informação estivesse em falta. O jornalismo voltou a provar da sua essência. Deveria tomar gosto por persegui-la, sempre. Em meio à degustação especial, não faltaram as acusações de sempre sobre privilégios na cobertura, ausência de crédito no material produzido por terceiros e um ensaio para o batido “espetáculo do escândalo”, o que poderia se justificar, em parte, pelo termômetro da concorrência, sobretudo na televisão.
No centro da polêmica reapareceu o problema dos vazamentos das operações da PF e os transtornos causados aos ilustres acusados, vítimas de exposição da imagem. Aliás, em sua defesa o barulho foi grande, maior que o de costume. Contudo, a existência desse tipo de conflito acaba legitimada quando, como sabemos, o que impera é a máxima segundo a qual o prejudicado de hoje é o beneficiado de amanhã, o que vale tanto para veículos de imprensa quanto para homens públicos. Aponto, porém, uma supervalorização do tema dos vazamentos das operações e da discussão sobre o uso adequado das algemas e sua relação com o apelo público, pelo menos no que se refere às atribuições e responsabilidades do jornalismo, embora esses aspectos mobilizem, com acerto, a atenção de juristas e autoridades.
Parto do princípio de que haverá sempre alguém que, como nesse episódio, lembrará que o vazamento de uma informação privilegiada é de responsabilidade exclusiva do vazador que, sendo agente público, está sujeito à sanção legal. Em socorro do jornalista será lembrada, ainda, a prerrogativa profissional do sigilo da fonte e da garantia da mais ampla liberdade no exercício da profissão. São argumentos que, combinados, e quando não estão em xeque situações de desvios éticos, tornam improvável qualquer possibilidade de revisão dessa postura, pelo menos na lógica própria do jornalismo e diante das regras atuais de que dispomos.
Responsabilidade social
O que a supervalorização dos vazamentos ajuda a desfocar, ainda que de forma involuntária, é a ausência de destaque da cobertura para a biografia do principal alvo da operação, seus negócios e as relações que estabeleceu com as próprias corporações de mídia do país, ao longo de uma dezena de anos de intensa atividade, e que está sob investigação criminal desde 2004. Fora os veículos voltados para o mundo financeiro e corporativo, a figura de Daniel Dantas era, até a realização da operação Satiaghara, a de um quase desconhecido da maioria dos brasileiros, alguém de vaga lembrança junto ao grande público, aquele que se informa predominantemente pela televisão.
Nessa condição, poderia ser facilmente confundido com o do ator homônimo ou com um dirigente de futebol.
A pergunta que surge é como um homem rico, poderoso e controverso conseguiu ser preservado da implacável exposição pública na mídia durante todo esse tempo? Chega a ser um paradoxo o fato da mistura entre escândalo, gente de renome no seu meio e dinheiro não ter produzido um fenômeno midiático. A própria presença de Dantas junto aos outros dois nomes de peso da operação expõe esse déficit de referência anterior. O primeiro apareceu apenas como o “banqueiro, dono do banco Opportunity”. Aos demais, as referências e as imagem foram mais claras: Celso Pitta apareceu sonolento e de pijama, sendo apresentado como o “ex-prefeito de São Paulo e ex-aliado de Paulo Maluf”. Já Naji Nahas, o “megainvestidor, responsável pela quebra da Bolsa do Rio no final dos anos oitenta”.
Talvez uma pista para tamanha deferência esteja na própria imagem do banqueiro junto aos jornalistas, empresários e autoridades públicas, e que aparece em fragmentos da cobertura. Aqui, a referência é para o “o economista prodígio, trator nos negócios e amigo do poder”. Mas o sinal de alerta acende mesmo quando se juntam outras informações dispersas, que nos dão conta, por exemplo, da existência de uma rede criminosa, que mantém pessoas infiltradas em diversos órgãos; daí, a acertada denominação de crime organizado. É quando o uso de notas plantadas na imprensa, da divulgação de notícias preparadas para determinado fim, da espionagem e da contra-informação faz associação entre o esquema comandado pelo banqueiro Daniel Dantas e a prática do jornalismo, quer dizer, do mau jornalismo.
No momento em que diversas instituições da sociedade demonstram interesse na discussão de aspectos de fundo do quadro produzido pela operação Satiagraha, e há a necessidade de avançarmos nos valores da democracia, convém aos jornalistas e à instituição imprensa a apuração dessas suspeitas, com a responsabilização dos culpados. Nunca é demais lembrar que a liberdade de imprensa, que é direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica o compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão. É o que preconiza o Art. 2º, inciso III, do nosso Código de Ética, cujo novo texto completará um ano neste mês de agosto. Ao não adotarmos essa postura, corremos o risco de vermos a granada lançada sobre a redação explodir no nosso colo.
(publicado originalmente no Observatorio da Imprensa http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br – ANO 13 – Nº 495 – 22/7/2008)