Artigo – Arte degenerada no Brasil
Por LILIA SCHWARCZ*
A situação que vivemos no Brasil de hoje lembra, infelizmente, a de outros momentos de suspensão democrática
A salubridade democrática de um país pode ser medida a partir da força de suas instituições republicanas e da capacidade que elas têm de conter o ódio, erradicar a intolerância, de abrir e incentivar o diálogo crítico. Na direção oposta, vários exemplos da história mostram como períodos ditatoriais foram anunciados por medidas autoritárias que pareciam, a princípio, apenas meros detalhes sem importância. Não eram!
A Alemanha nazista, por exemplo, utilizou as exposições de arte como prova de sua força e arbítrio. Foi no dia 19 de julho de 1937 que se deu a abertura da mostra chamada “arte degenerada”. O evento quase que anunciava o que viria pela frente: dois anos depois começaria a Segunda Guerra Mundial que assolou a Europa toda e o resto do mundo também.
O suposto dessa exposição, organizada pelos nazistas, era que obras, hoje consideradas clássicas, deveriam ser esquecidas, ridicularizadas e até destruídas. A mostra congregava cerca de 600 trabalhos de pintores como Kandinsky, Chagall, Paul Klee, que foram simplesmente amontoados ou dispostos ao lado de desenhos de pacientes psiquiátricas e fotos de pessoas com deficiência física e mental. Dessa maneira, as telas acabaram associadas à loucura e à falta de norma e ordem; tudo ao contrário do que pedia a “boa ética nazista”. Para medir o calibre e alcance do argumento dos generais, basta dar voz ao presidente da Câmara de Belas Artes de Berlim, que já nesse momento era controlada pelos nazistas: “vemos ao redor de nós os fetos da loucura, do descaramento, da incompetência e da degeneração”.
Esse foi só o começo de uma verdadeira “missão civilizatória” (ao revés), que acabou por tirar de circulação cerca de 20 mil obras e atacou 140 artistas. Alguns desses trabalhos foram vendidos; outros trocados por peças consideradas mais apropriadas ao gosto e estilo nazistas: obras neoclássicas e sem qualquer laivo de inovação. O maior alvo foram os pintores do cubismo, do dadaísmo e do expressionismo, definidos por Alfred Rosenberg, um dos grandes ideólogos do nazismo, como exemplos do “bolchevismo cultural”. A intenção era clara: tirar da arte o seu espaço imaginativo e transgressor para apenas vinculá-la ao contexto político imediato. Mais ainda, pretendia-se insuflar a “turba” e promover a radicalização.
Se toda arte é política, pois os significados são sempre políticos, não é possível limitá-la apenas ao seu momento, como se ela tivesse um compromisso marcado com a “realidade” e com o testemunho direto e sem mediações.
O certo é que a maior parte desse trabalhos acabou sendo destruída, como se representassem um mal em si mesmos: exemplos de comportamentos desviantes. Apenas no dia 20 de março de 1939 foram queimadas, numa praça pública em Berlim, tal qual um grande auto de fé, 1.004 telas e 3.825 peças; todas classificadas como “arte degenerada”.
‘Arte degenerada’ no Brasil
Já faz 80 anos que os nazistas caluniaram artistas e destruíram suas obras de arte; tudo em nome do Estado e dos “bons princípios”. Faz muito tempo, mas por vezes impressiona como o presente lembra o passado. Imagino que, a essas alturas, todos conheçam de cor os episódios que levaram ao fechamento da mostra do Santander – “Queermuseu – Cartografia da diferença na arte brasileira” – e os detalhes acerca dos ataques covardes que o bailarino Wagner Schwartz sofreu, por conta da sua performance que aludia aos famosos bichos manipuláveis de Lygia Clark.
Em meio aos debates acalorados, o que pouco se mencionou, no entanto, foi exatamente o tema que estava lá sendo tratado: ARTE. Ao contrário, fiéis a uma atitude moralista e normativa que vem assombrando os brasileiros, muitos parecem achar melhor julgar do que ver; condenar antes de observar. Obras de arte aí estão para serem analisadas, estudadas, apreciadas. Gosto não é algo que se herda. É preciso entrar em contato; visitar exposições e assim produzir uma percepção pessoal sobre o que se gosta e o que não se gosta.
Já o que temos visto por aqui é em tudo contrário: as pessoas “nascem” com posições fechadas, sem nem ao menos colocar os pés em uma dessas instituições. Fotos isoladas, distribuídas pela internet, não ajudam a entender a potência de uma exposição que se revela a partir do conjunto de suas obras e da tensão que elas produzem entre si. Conselhos e boatos longínquos, sem que se faça um corpo a corpo com as obras, também não auxiliam; só criam marola.
Um julgamento desse tipo também se abateu sobre a mais recente exposição do Masp, “Histórias da sexualidade”. A despeito da data de abertura oficial ter ocorrido no dia 20 de outubro, já no dia 18 um grande número de internautas tinha opinião formada sobre tudo: o que era a mostra e o que deveria ser.
Nesse caso, e como o objetivo é antes alimentar a polêmica e não tanto falar e consumir arte, foi a censura para menores de 18 anos que “pegou”. De um dia para o outro, brasileiros converteram-se não só em críticos de arte, como em curadores e, ademais, especialistas na legislação brasileira. Alguns, candidamente, explicaram que uma exposição de arte é educativa e deveria se abrir para estudantes. Nesse aspecto imagino que não exista alguém no Masp que discorde da posição. Essa era inclusive a intenção do museu até que a mostra teve que passar por um “aconselhamento jurídico”, que avaliou que ela apresentava “cenas de violência, de sexo explícito e de linguagem inadequada”.
Que mundo é esse que faz com que exposições tenham que ser analisadas sob essa perspectiva?
Na outra ponta da linha estão as teses, como as que descrevi logo acima, que parecem desconhecer o momento e o contexto em que vivemos. Vale a pena desconfiar da evidência; em 70 anos o Masp jamais censurou uma exposição ou colocou faixa etária em um catálogo. Resta a pergunta: será que não há alguma “coincidência” nessa “súbita” mudança de atitude? A medida seria causa ou consequência?
Qualquer tomada de decisão, no contexto de radicalização em que vivemos, é também um gesto político. Não se pontifica no abstrato, mas diante de um Brasil que anda por demais municiado. Como garantir que uma exposição abra e continue aberta por três meses? Como impedir que obras sejam atacadas e até ameaçadas pela população?
Sei que conselho bom não vem de graça. Mas acho que é hora da sociedade brasileira parar de apontar o dedo para indivíduos ou instituições e começar a chamar para si a responsabilidade. Se a pressão vier da própria sociedade cidadã, que se manifesta por direitos, quem sabe não revertemos esse e outros quadros?
Mas há ainda outros argumentos que têm aparecido toda vez que um problema como esse se avoluma. Alguns comentaristas, também sem conhecer a exposição de perto, sugeriram que telas “impróprias e censuráveis” fossem colocadas num espaço especial. Mudar obras de lugar e dispô-las numa sala apartada passaria que tipo de mensagem ao público? Não significaria retomar a filosofia do “amontoado de obras” que vimos acontecer na exposição de arte degenerada da Alemanha nazista? Não implicaria admitir que existem, sim, obras “censuráveis” e
outras não?
A opção do Masp foi não aceitar o corte de obras previamente encomendadas; o que levaria a outra forma grave de censura e que afetaria parte significativa de trabalhos da exposição. Tal opção também privilegiou a manutenção da lógica e da unicidade da mostra, bem como a distribuição das peças de maneira articulada aos seus nove núcleos. Enfim, estamos falando de arte e não de “arranjos” para contornar e não enfrentar o ruído. Aliás, tomara que o ruído vire barulho.
A situação que vivemos no Brasil de hoje lembra, infelizmente, outros momentos de suspensão democrática. Nossas instituições andam frouxas, o governo sem rumo (apenas com projeto de permanência no poder) e a população vai destilando exemplos de sua incapacidade para o diálogo e para a escuta. Nesses contextos, muitas vezes, as artes são as primeiras a serem atacadas. Em vez de enfrentarmos os graves problemas sociais que assolam o país – os feminicídios, os racismos, a homofobia, os estupros de mulheres e crianças, a pedofilia, a desigualdade, a intolerância diante do “outro” – estamos usando, de um lado e de outro, o pretexto das exposições de arte.
Hora de atuar por direitos e não só de reclamar sentados numa arquibancada. Como afirmou Lima Barreto, numa coluna intitulada “Transatlântico” e escrita em inícios do século 20, – num momento de grave crise da Primeira República brasileira: “Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou”.
PS: Antes que me “apontem o dedo”
Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”,“As barbas do imperador”, “O sol do Brasil” e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
Fonte: Jornal NEXO