Ataques de Bolsonaro legitimam agressões contra jornalistas, dizem organizações
Entidades e organizações ligadas ao jornalismo repudiaram de forma veemente a violência contra profissionais da NSC TV, afiliada da TV Globo em Santa Catarina, que foram agredidos por banhistas na praia do Campeche, em Florianópolis, na última segunda (2), feriado dos Finados.
Os dois repórteres faziam uma matéria sobre o descumprimento do decreto que proíbe a permanência de pessoas na faixa de areia das praias da ilha, quando um homem, sem máscara, se aproximou e ameaçou quebrar a câmera alegando que supostamente teria sido filmado sem autorização.
Após uma série de ataques verbais, a repórter Bárbara Barbosa começou a gravar as ameaças com o celular. Em seguida, um segundo homem desferiu um tapa em direção à profissional e tentou arrancar o aparelho, que foi tirado de suas mãos à força por uma mulher que os acompanhava.
Depois do cerco à equipe, os dois profissionais da emissora registraram boletim de ocorrência. A repórter ficou com marcas no pulso e no braço depois de ter sido agarrada por um dos agressores e fez exame de corpo de delito no Instituto Geral de Perícias de Santa Catarina na terça (3).
Ainda que as imagens da abordagem tenham sido amplamente divulgadas e gerado críticas em nível nacional, o episódio é apenas mais um entre dezenas de ataques que os profissionais de imprensa têm recebido no último período.
Segundo Maria José Braga, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), somente na última semana outros três casos de violência foram registrados.
Entre eles, o sequestro na própria casa do jornalista Romano dos Anjos, apresentador da TV Imperial, afiliada à Rede Record em Roraima. O profissional, que frequentemente tece críticas à corrupção local, foi encontrado no dia seguinte com as pernas lesionadas e com o braço esquerdo quebrado.
Conforme levantamento da Fenaj, em 2019 foram registrados 208 casos de violência contra a imprensa, somando episódios de descredibilização da imprensa e agressões diretas. O número é 54,07% maior do que o registrado no ano anterior.
Sozinho, o presidente Jair Bolsonaro foi responsável por 114 casos de descredibilização da imprensa e outros sete casos de agressões verbais e ameaças diretas a jornalistas em 2018, totalizando 121 casos – o que corresponde a 58,17% do total.
Para Braga, os dados mostram que a sociedade brasileira está completamente influenciada por uma política de violência e de ódio que se instalou no país desde a eleição de Bolsonaro.
“Ao fazer tantos ataques aos profissionais e à imprensa de forma geral, o presidente institucionaliza a violência contra os profissionais no Brasil. Isso é gravíssimo. Se a presidência da República faz, de alguma forma, autoriza a sociedade que faça. Tem sido muito frequente a agressão de profissionais jornalistas por partidários do bolsonarismo. Acham que a violência é uma forma de resolução de conflitos e das diferenças na sociedade. Isso é inadmissível”, afirma a presidente da Fenaj.
Sobre o caso em Florianópolis, ela comenta que o espaço público pode e deve ser lugar de atuação da imprensa e embora o cidadão possa invocar o direito à imagem, nada justifica o uso da violência.
“Há controvérsias e interpretações diferenciadas por parte dos operadores do direito de imagem quando a pessoa está em um espaço público. No nosso entendimento, se não há constrangimento para o cidadão, não há problema na atuação do profissional. Quando se trata de pessoas públicas, esse direito à imagem está condicionado ao interesse público da informação. É preciso buscar o equilíbrio”, complementa Braga.
Agressões recorrentes
De acordo com a Federação, os ataques sistemáticos à imprensa se intensificaram em 2020: apenas de janeiro a setembro, Bolsonaro fez 299 declarações ofensivas ao jornalismo, o que corresponde a 33 casos por mês, em média.
A maioria, 259, é classificada como descredibilização da imprensa, quando o presidente investiu contra o jornalismo em geral ou contra um veículo específico. O restante foram registrados como ataques diretos a profissionais.
Na opinião de Marcelo Trasel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a polarização e os ânimos acirrados da atual conjuntura política brasileira fazem com que as pessoas considerem a mídia tendenciosa quando a notícia é desfavorável a seu grupo.
“A desconfiança contra a imprensa é alimentada pelos discursos estigmatizantes adotados por políticos como o presidente da república e vários membros do Congresso Nacional, bem como funcionários públicos do alto escalão. Esses políticos efetivamente pintam um alvo no peito de todos os jornalistas, levando a assédio nas redes sociais, ameaças, intimidação e, nos casos mais graves, agressões físicas”, diz Trasel.
Um estudo da Unesco divulgado em 2 de novembro, Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas, mostrou que 44 jornalistas brasileiros foram mortos entre 2006 e 2019. Desses, 32 casos permanecem sem desfecho.
Segundo a Repórteres Sem Fronteiras, o grau de liberdade de imprensa no país também caiu com a chegada do capitão reformado ao poder. O Brasil ocupa, atualmente, o 107º lugar no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020. Uma queda de duas posições em relação a 2019.
Trasel acrescenta que a mídia ser usada como bode expiatório para os problemas do país ou ser apontada como inimiga do Estado, prática recorrente de Bolsonaro, é um mau prenúncio. “É uma tática fascista que, analisando os livros de história, cedo ou tarde traz resultados violentos.”
Direitos coletivos ameaçados
No mesmo tom crítico que os demais entrevistados, Olivia Bandeira, da coordenação executiva do Intervozes, avalia que os ataques do governo aos jornalistas também se configuram como uma ameaça à liberdade de expressão em um sentido mais amplo.
“[As agressões] Violam o direito dos profissionais de exercerem a profissão e dos brasileiros de receberem a informação, a terem acesso à informação de qualidade. Isso compromete a democracia porque a democracia precisa de um ambiente informativo livre, plural e diverso para poder se efetivar”, defende Bandeira.
Ela afirma que a hostilidade registrada desde 2019 contra os profissionais nunca havia acontecido no período pós redemocratização. “É uma tentativa de calar qualquer mídia que esteja em desacordo com o interesse do governo, de seus membros e mesmo apoiadores. É uma censura à imprensa”.
Além de ferir os direitos coletivos, Olivia acredita que o descrédito da imprensa por parte das autoridades cria uma desordem informativa, fator que se agrava em meio a uma crise sanitária sem precedentes.
A representante do Intervozes frisa ainda que os ataques têm um componente altamente machistas e misógino, já que parcela considerável das ameaças e agressões são dirigidas a comunicadoras mulheres.
Bandeira relembra que o Estado brasileiro tem a obrigação de proteger o jornalismo e seus profissionais, um dos inúmeros compromissos assumidos em tratados internacionais. Caso o governo continue cumprindo esse papel, ela acredita que o futuro será ainda mais preocupante.
“O sistema de Justiça e os órgãos públicos que tratam dessa questão precisam tomar providências e se posicionar no sentido de não deixar impune os ataques e ameaças. A impunidade faz com que aumente as violações”, diz, reforçando a importância da mobilização da sociedade civil e da categoria como um todo.
Orientações aos profissionais
A Abraji, que frequentemente recebe denúncias relacionadas ao tema, publicou um guia online com orientações para lidar com casos de assédios contra jornalistas e ataques nas redes sociais. A organização mantém um convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que advogados prestem orientações iniciais.
Além de se manifestar contra os casos reportados, a Abraji reforça que as ameaças e agressões físicas devem ser relatadas às autoridades.