Castelinho e a cena política brasileira
Por Felipe Quintino – Com uma memória prodigiosa e a habilidade em cruzar variadas informações, o jornalista Carlos Castello Branco, o Castelinho, acompanhou a política nacional e suas principais mudanças. Testemunha de duas ditaduras (a do Estado Novo e a militar), Castelinho teve pela frente o exercício diário do trabalho com a linguagem, em meio às práticas de censura, mostrando um painel da cena política brasileira. A partir de entrevistas, documentos, cartas e textos publicados na imprensa, o jornalista Carlos Marchi levantou esse percurso no livro Todo aquele imenso mar de liberdade: a dura vida do jornalista Carlos Castello Branco, lançado recentemente pela editora Record. Em um amplo trabalho de pesquisa, o autor conseguiu entrelaçar a trajetória do jornalista aos momentos históricos do país, além de detalhar parte da história da imprensa.
Nascido em Teresina e o quinto de nove filhos, Castelinho mudou-se aos 16 anos para Belo Horizonte, onde iniciou os estudos na Faculdade de Direito. Paralelamente, ele começou como repórter policial do jornal Estado de Minas, em março de 1939. Ao receber uma carta do pai relatando dificuldades financeiras, ele procurou um colega de faculdade que trabalhava no jornal para que lhe conseguisse um emprego. Além dos estudos e das pautas de polícia, o tempo que viveu em Belo Horizonte propiciou a Castelinho estreitar amizade com vários jovens escritores e jornalistas que moravam na cidade, como Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Influenciado pelas conversas com essa turma e a troca de leituras, ele tenta incursão no mundo literário, lançando dois livros, sem grande sucesso, na década de 1950: Continhos brasileiros e Arco de triunfo.
A mudança para o Rio Janeiro, aos 25 anos, evidencia o seu primeiro contato com o jornalismo político, que marcaria a sua carreira pelos próximos anos. Essa ligação aconteceu em O Jornal, pertencente ao grupo dos Diários Associados, de Assis Chateuabriand. No Rio, a convite do jornalista Pompeu de Sousa, também trabalhou como editor de política do jornal Diário Carioca. A cobertura política também foi realizada para revista O Cruzeiro, mas ele deixou a publicação para ser secretário de imprensa do governo Jânio Quadros, mudando-se para Brasília. Castelinho cobriu para a revista as várias atividades da campanha de Jânio e ficou próximo das pessoas que fariam parte do governo. Após eleito, Jânio pediu ao então diretor de O Cruzeiro, Leão Gondim de Oliveira, que “emprestasse” Castelinho por seis meses. Gondim cedeu ao pedido, mas a experiência seria interrompida em razão da renúncia do presidente.
Depois de um breve período com seus textos publicados no jornal Tribuna da Imprensa, Castelinho foi convidado por Manuel Nascimento Brito, então diretor do Jornal do Brasil, para transferir seus comentários para lá. A Coluna do Castello, nome dado por sugestão do jornalista Alberto Dines, estreou em janeiro de 1963 no Jornal do Brasil, onde Castelinho trabalhou por 30 anos. Durante a ditadura militar, ele teceu críticas aos governos, foi preso em 1968 e chamado várias vezes para interrogatórios, momentos em que os agentes queriam saber as fontes para os comentários. Primo de Humberto Castello Branco, primeiro presidente do governo militar, o jornalista veio a dizer, posteriormente, que o marechal não era boa fonte de informação, além de vaidoso.
Conhecimento histórico
A biografia aponta a simpatia de Castelinho com argumentos da União Democrática Nacional (UDN), principalmente, a ala que defendia as liberdades democráticas e combatia a censura. Essa vinculação fez com que ele aceitasse um convite do deputado José Cândido Ferraz, da UDN do Piauí, para ser delegado no congresso estadual do partido em seu estado natal, única situação que atuou, formalmente, dentro de uma legenda.
Um ponto de destaque do livro foi mostrar que o relacionamento entre Castelinho e a direção doJornal do Brasil nem sempre esteve pautado pela harmonia, mas também por fortes tensões. A principal delas ocorreu no governo do general Emílio Garrastazu Médici. De acordo com a biografia, o jornalista sofreu pressões de Nascimento Brito para aliviar as críticas ao governo de Médici. O jornal buscava, ao fechar acordo com o governo, vantagens de publicidade. Em determinado momento, segundo relata Marchi, Nascimento Brito chegou a propor ao jornalista que evitasse temas da atualidade política, o que fugia do colunismo baseado nos assuntos políticos do momento.
Para o autor, Castelinho “conseguiu sobreviver ao regime militar porque conseguia relatar situações políticas sem usar palavras agressivas e alinhando informações com naturalidade, relatando os conflitos como um efeito dialético, sem pretender jogar maliciosamente um agente político contra outro”. Além dessas características, Marchi afirma que, no processo de endurecimento do regime, o jornalista foi “paulatinamente obrigado a redigir informações em linguagem indireta, quase cifrada, não explícita, usando um estilo de símbolos e entrelinhas para descrever fatos e análises”.
Apesar dessa “sobrevivência” nas páginas do jornal, um fato com seu filho (Rodrigo) gerou suspeitas sobre a atuação da ditadura no seu cotidiano familiar. Rodrigo morreu em um acidente de carro em Brasília, aos 25 anos, em 1976. Os relatos sobre a hipótese de sabotagem do carro foram direcionados a Castelinho e sua mulher, Élvia. A advertência também partiu do ex-presidente João Goulart em uma conversa com Castelinho, realizada em um hotel em Paris. Deposto pelo golpe militar, Jango relatou as ameaças feitas aos seus filhos e perguntou ao jornalista se ele havia mandado apurar a morte de Rodrigo.
Um ano e meio após a morte do seu filho, Castelinho, aos 57 anos, aceitou encabeçar a chapa do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, a convite de jovens jornalistas, como o próprio autor da biografia. Muitos não entenderam as razões de um colunista de prestígio ter feito esse engajamento, na campanha do sindicato, em 1977, ano que Castelinho também lançou seu livro de maior repercussão, Os militares no poder. Para Marchi, a luta pelo restabelecimento da plena liberdade de imprensa e de informação pode ter sido o ponto que convenceu Castelinho a aceitar o cargo, já que tal defesa havia sido feita por ele em outros momentos da sua vida. Dois anos depois do término do mandato no sindicato, ele foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), após forte articulação do político José Sarney, antiga amizade do jornalista, desde o seu primeiro mandato como deputado federal, em 1954.
Em uma passagem com tom crítico na reconstituição da trajetória do jornalista, mas com as devidas contextualizações, Marchi cita dois “pecados”: o fato de Castelinho ter ignorado o começo do movimento das ruas que desembocou nas campanhas das Diretas e desdenhado de figuras que não tinham perfil do político intelectual e com amplo saber jurídico e cultural. Com o título “Itamar Franco entre a cruz e o calvário”, a última coluna de Castelinho no Jornal do Brasil foi publicada em maio de 1993, ano de sua morte. Aliando a trajetória aos vários momentos da história política do país, o livro contribui para dimensionar o percurso de Castelinho, suas relações ao longo do tempo, rumos da imprensa e procedimentos em busca de informações. Fontes de conhecimento histórico e narrativas importantes para a memória do jornalismo brasileiro, os textos do jornalista (cujos trechos são citados ao longo do livro) ajudam a compreender o passado recente, deixando marcas para o entendimento do presente.
Felipe Quintino é jornalista e doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP)
Texto publicado no Observatório da Imprensa em 16/06/2015