A imprensa que explora a dor também é violenta
O absurdo caso da criança, é bom frisar, uma menina de 10 anos, que teve a gravidez interrompida após ser estuprada pelo tio, de 33 anos, em São Mateus, norte do Espírito Santo, leva à reflexão sobre o papel de jornalistas e da imprensa na cobertura do caso.
Até onde veículos de comunicação devem ir, em busca da notícia exclusiva, e será que há uma dosagem necessária ao destaque que se dá aos fatos para que, em vez de ajudar a vítima e a promover a Justiça, não se transforme a cobertura em um show de mais humilhações?
Ao falar de jornalismo é preciso pensar na responsabilidade social da profissão. Ao falar dos veículos de imprensa, é necessário refletir sobre o alcance e credibilidade que têm, a partir do trabalho jornalístico.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõe, em seu Capítulo II – “Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade”:
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”
Jornalismo responsável não expõe nome ou sobrenome, nem as iniciais, de crianças e adolescentes vítimas de violência ou autores de infrações. Nem sequer de seus familiares. Nem sequer o bairro onde moram, caso essa divulgação vá, de alguma forma, identificar esse menor.
O que ocorreu, então, com A Gazeta-ES, que no domingo (16/8) divulgou reportagem em seu site, informando que a criança de 10 anos seria levada para Recife (PE) para que o aborto, visando a interromper uma gravidez, fruto de violação de seu corpo, fosse realizado? Na reportagem, o veículo cita que:
“Fontes ligadas ao caso informaram que a criança foi transferida para Pernambuco porque, naquele Estado, há ‘protocolo instituído para devida avaliação e cumprimento da decisão judicial, uma vez que o Hucam não tem protocolo para interromper gestação com mais de 22 semanas’”.
Qual a relevância jornalística da divulgação da cidade e do estado onde o procedimento seria realizado? Não se imaginou que tal informação, assim como a divulgação do nome, sobrenome, iniciais, ou qualquer outro dado pessoal pudesse, além de ampliar a repercussão do caso, expor ainda mais a criança?
A responsabilidade de Sara Giromini de divulgar dados sobre a menina, bem como de demais extremistas na frente do hospital, protestando e chamando uma criança de 10 anos de “assassina” e, inclusive, de tentar invadir o local devem ser investigadas. Para extremistas e criminosos, como o estuprador, espera-se o rigor da lei.
Para jornalistas e veículos de imprensa, pressupõem-se bom-senso e ética. Espera-se uma urgente autocrítica. E aí, não somente para A Gazeta, mas para todos que estão trabalhando na cobertura do caso. Divulgar exaustivamente entrevistas com médicos que realizaram o aborto, repetir e repetir a sentença do juiz … até que ponto clique em links e acessos a sites e redes sociais valem mais que a dignidade e proteção de uma criança?
Abre-se a oportunidade para cobrar da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) e Secretaria de Justiça a apuração e responsabilização sobre como dados da menina, sob tutela do Estado, foram vazados de um hospital público.
O Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), que se recusou a fazer o aborto, alegou que não tinha condições técnicas para “conduzir uma antecipação do parto, após 22 semanas” e negou viés ideológico.
Outro ponto a ser observado é sobre a prisão do estuprador, ocorrida nesta terça-feira (18). E aí, lembremos: nem sequer sua foto poderá ser divulgada, uma vez que ele é tio da vítima e essa divulgação vai fazer com que ela seja identificada e, mais uma vez, violentada psicologicamente.
Aliás, por que o foco desta sociedade tão hipócrita, até a prisão do tio, foi “o aborto”? Por que o estupro, violência que a menina sofreu, não teve a mesma ênfase? O “tribunal da internet” já julgou e condenou a vítima diversas vezes. A internet, apesar dos avanços na legislação, é conhecida como “terra de ninguém”.
Mas a imprensa, não ! A imprensa não tem o direito de explorar a dor de uma criança de 10 anos, pois isso também é uma forma de violência contra ela. “Como está a menina de 10 anos, após o aborto?”, diz uma chamada de telejornal, que repete e repete toda a história, contada desde o último dia 14. “Os batimentos do feto foram interrompidos”, continua o telejornal. É necessário detalhar um aborto?
Jornalistas são seres humanos e estão sujeitos ao erro. Por isso, têm seu trabalho pautado da Constituição Federal e em um Código de Ética. Por isso, é necessária uma autocrítica diária. Melhoremos sempre!